As cidadanias ativas se forjam e se renovam na disputa social, a partir dos territórios, afirmando identidade social e, ao mesmo tempo, demando reconhecimento e pertencimento ao coletivo com um todo, com direitos iguais na diversidade. Trata-se de uma prática de liberdade de pensar e agir, para elaborar e disputar narrativas sobre si mesmas e da sociedade como um todo. Assim, se situam no emaranhado de relações, processos e estruturas históricas vividas, suas formas de dominação, exploração e destruição, violência, discriminação e exclusão. No processo se forja a busca da emancipação cidadã indispensável para um agir coletivo. Ao mesmo tempo, para ganhar potência política, a própria prática leva a criar organizações e movimentos sociais, redes, coalizões, partidos, assim como a identificar e qualificar os conjuntos de forças sociais e políticas divergentes e as totalmente opostas. Este processo de pensamento em ação é que pode dar vida e intensidade à democracia, como modo de transformação ecossocial das estruturas e processos políticos e econômicos.
Assim colocada a questão, fica claro que o chão da sociedade civil é a fonte inspiradora e a esfera prioritária. Isto tanto para a elaboração e sistematização da perspectiva democrática enquanto um “saber político” de cidadania, como para disputar a hegemonia na orientação política do Estado e na formulação de políticas históricas necessárias. Estrategicamente, não podemos perder de vista que a democracia não é um projeto ou um modelo, mas um modo de fazer em meio à situações históricas dadas. O quanto poderá ser um processo virtuoso de transformações ecossociais depende da capacidade de pressão intensa e contínua pelas cidadanias em ação, arrancando acordos, sempre provisórios, com forças divergentes e opostas.
Mas algo fundamental depende só de nós mesmos, as cidadanias. Estou me referindo ao próprio processo, profundamente emancipador, de pensar, se sentir e de agir como cidadania consciente de ser titular de direitos iguais na diversidade. Nunca podemos deixar de reconhecer que a situação de se ver como cidadania sempre é e será uma conquista libertadora de nós mesmos, não é uma concessão de algum poder existente. Mesmo nas piores situações, como nas ditaduras as mais violentas e excludentes, a cidadania pode ser legalmente negada, mas não a consciência dela quando nos sentimos cidadania de fato. Claro, o reconhecimento “legal” de direitos de cidadania é sempre fundamental, mas não é tal reconhecimento que “cria” os sujeitos de cidadania, estes se descobrem e se fazem como tais. Lembro aqui a importância estratégica, para uma reflexão sobre esta questão central, do saber coletivo sistematizado pelo genial Paulo Freire, um pensador-educador que a sociedade brasileira gerou e que, com seus escritos, criou um patrimônio de “prática da liberdade” e emancipação, que é uma referência mundial. Não é por nada que o pensamento de Paulo Freire incomoda tanto as classes dominantes, de modo particular as brasileiras com seu ranço colonial, racista e patriarcal.
O fato é que a exploração e a dominação, que negam na prática a plena cidadania de direitos iguais na diversidade, contam sempre com o Estado e se fazem pela coerção explícita. Mas nunca dispensam a estratégica de imposição ideológica de modos de pensar, ver e agir, parte de sua hegemonia. Expressando de modo direto, estamos lidando permanentemente com um esforço sistemático de colonização de nossas mentes, imaginários e valores pelo capitalismo vigente, mais do que admitimos ou nos damos conta. E a montagem de um potente dispositivo de disparo sistemático de fakenews pela direita fascista, já pode ser considerada como verdadeira guerra de conquista de corações e mentes. Talvez estes sejam os domínios mais críticos para a tarefa de disputa de hegemonia democrática pelas cidadanias ativas brasileiras na presente conjuntura.
Lembro algumas trapaças ideológicas pela comunicação e publicidade que se tornam senso comum e se reforçam porque tomam conta da linguagem que usamos correntemente. É forçoso reconhecer que a linguagem que nos socializa e nos torna membros de uma coletividade, um comum fundamental, também está sendo sistematicamente colonizada e enviesada pelos modos de ver e pelos conceitos de quem nos domina ou quer dominar. A crítica radical dos imaginários e valores que alimentam tais processos de comunicação é uma tarefa fundamental e permanente nossa, de cidadanias, a ser feita no seio da sociedade civil.
Para não falar abstratamente de algo muito urgente a focar e a enfrentar com potente processo de análise, educação, comunicação e cultura viva, vou apontar alguns pontos como exemplos. Lembro aqui o “Agro é tec, o agro é pop, o agro é tudo”, amplamente difundido pela grande mídia. Esta mensagem já está bem desconstruído entre nós, analistas, redes de agroecologia e saúde coletiva, movimentos sociais como o MST, MAB, MPA… Mas pouco ou nada fizemos visando o grande público, nos espaços de educação, nas manifestações culturais, nas grandes periferias, na mídia, nas redes digitais que vão além de nós mesmos, sobretudo as que alcançam os setores populares urbanos. No caso da propaganda sistemática do agro, ela não é feita para nós, mas para a “massa”. Está em jogo uma disputa de narrativas e, devemos reconhecer, com eficiência e grande impacto. Ela encobre e embeleza com imagens e narrativas que legitimam o agronegócio com todo o que é: sua concentração de terras, seu extrativismo criminoso sobre biomas, com monoculturas, agrotóxicos perigosos e condenados, com uso insustentável e contaminação de águas, com fábricas (não criações) de animais que precisam ser abatidos antes que morram de cirrose devido ao que lhes é ministrado via ração para aumentar peso e produtividade. O agronegócio e a cadeia de processamento de seus produtos nada saudáveis fornecem a maior parte da comida que chega nos supermercados, onde a população se abastece, quando tem renda! O pior de tudo é associar o tal “agro” da publicidade com a produção de quilombolas ou de camponeses, como se fossem do mesmo mundo. Chega a ser insulto descarado e criminoso, pela falsidade. Tudo para combater no plano ideológico qualquer tentativa de tentar uma reforma radical da nossa estrutura agrária e do modo de produção do agronegócio, controlado por donos de terras, gado e gente.
O exemplo acima vale para ver o tamanho da encrenca que precisamos enfrentar como cidadanias. Fica claro que o seu objetivo como narrativa é enfrentar e desacreditar as lutas dos movimentos sociais dos campos, matas e águas. Só que tais mensagens sistematicamente difundidas nos grandes meios de comunicação precisam ser encaradas por nós mesmos, com narrativas virtuosas contrárias e que ponham a nu a verdade, também visando o grande público.
Um outro exemplo, mais sutil, mas que forma uma espécie de balaio de conceitos “verdadeiros” do capitalismo neoliberal, como mensagens que o legitimam. Não temos críticas de alcance amplo sobre “empreendedorismo”, como a grande tábua de salvação e conquista de autonomia individual neste sistema criador de exclusões e destruições. É uma expressão ao gosto do BM e que virou senso comum via globalização. “Empreendedor”, no caso, é visto como um sujeito que, por si só e em função de seu interesse privado (individualismo) é capaz de criar e buscar sucesso econômico e se superar na vida. O pior é que, no geral, trata-se de se virar sozinho e como for possível, quase sempre na informalidade, como no caso brasileiro. Avaliando com profundidade, é apenas uma estratégia de sobrevivência neste sistema de exploração sistemática, desigualdades e exclusões sociais. Mas é apresentado como virtude nos grandes meios de comunicação. A criação de tais “microempresas” é divulgada em números e como exemplo de sucesso. Os fracassos, com endividamento individual e familiar, são mais numerosos e reiterados, mas nunca são divulgados como tal.
Precisamos dar mais atenção ao esforço de “desculpabilizar o capital” junto à sociedade que temos – estrategicamente denunciado e enfrentado pelos potentes movimentos operários que se desenvolveram ao longo dos dois séculos e tanto de capitalismo. Mas hoje, até esquerdas usam normalmente, por exemplo, expressões como “capital humano” quando se referem ao esforço de se qualificar a si mesmo e a população para a sua “empregabilidade”. Novamente não é “capital” de quem se educa, mas sua força de trabalho a ser explorada pelo capital real. Também é capital – “capital social” – tudo o que o território contém em termos de recursos naturais, tamanho de sua população, grau de formação, infraestrutura, localização, etc. Pode ser urbano ou rural. Tudo isto é visto como oportunidades e vantagens de negócios para o grande capital. Sem dúvida, o “capital social” existente não precisa ser pago, mas importa muito na decisão de uma grande empresa capitalista transformar tal território em seu espaço de exploração para fins de acumulação privada. Para quem luta pelo direito de seu território e de pertencimento a ele, seja a cidade ou o território tradicionalmente ocupado, está reivindicando o direito a um comum fundamental para seu modo de vida, não o de ser dono de um “capital social”. O engodo chega ao absurdo com o “capital natural” e o tal “capitalismo verde”. Cunhar como “capital social” é um grande malabarismo ideológico justificador de usurpações de comuns pela ditadura do mercado. Aliás, o “mercado”, com seu mantra de ajuste fiscal e teto de gastos esconde a origem do problema: os juros estratosféricos da dívida pública, a grande armadilha de roubo “legal” inventada pelos especuladores sobre os recursos públicos, de todos nós membros da sociedade. Que bom que o próprio governo que elegemos já apontou tal questão como uma prioridade a enfrentar, finalmente!
A lista de narrativas colonialistas de nossas mentes e vontades pelo capitalismo é enorme. Temos narrativas dominantes que alimentam o senso comum escondendo lógicas de exploração e destruição, exclusão e domínio, que vem herdadas do passado colonial mas continuam estruturalmente determinantes até hoje, como o racismo e o patriarcalismo, reforçado pela necropolítica de violência e extermínio dos indesejáveis. Os movimentos de cidadanias ativas e seus intelectuais já vem tematizando com rigor e consistência tais processos. Faz falta uma comunicação democrática vigorosa de tais análises para que chegue a todas os recônditos de nosso país, para virar tema de conversas em famílias, nos bares, nas praias, no trabalho.
Uma questão democrática essencial é sentir-se emancipado, autônomo, ao menos para pensar e ver onde incidir politicamente. Mas estamos enredados em verdadeiro campo minado e mais amplo do que comumente consideramos. O capitalismo está impregnado na vida social, especialmente nesta fase do domínio neoliberal com seu mantra de que não existem alternativas e que chegamos ao fim da história. Precisamos dizer um “basta!’, em alto e bom som. Chega de convivências com isto tudo! Não podemos nos contentar com um “liberalismo progressista”, como muitos analistas definem a onda de governos de esquerda do início do século XXI. Fazer ajuste melhor continua sendo, de algum modo, uma rendição ao neoliberalismo capitalista.. Isto só nos tem “encurralado”, literalmente.
Mas tudo isto ainda não é a história completa, aliás, muito mais complexa do que seja possível qualificar na postagem de um blog. Além dos engodos ideológicos do capitalismo neoliberal que alimenta a colonização de nossas mentes e vontades, hoje temos um adicional extremamente grave a enfrentar e reduzir o seu poder destrutivo, condição sine que non da continuidade democrática, seja qual for. Trata-se da penetração eficiente no seio da sociedade civil brasileira de narrativas fascistas demolidoras, com possibilidades de hegemonia, que alimentam o ódio e não a convivência. Não podemos menosprezar seu alcance e o grau de adesão que conseguiu. O fascismo explorou a frustração crescente em grandes massas da população, especialmente nas periferias urbanas, e se tornou a principal ameaça à democracia instituída, no imediato. Pior ainda é o fato que, a seu modo, um versão de fascismo a la brasileira é melhor para o capitalismo neoliberal dos 1% do que qualquer democracia que ouse se pautar em “cuidar de gente e da natureza”. Ou seja, não podemos separar a ascensão fascista do próprio capitalismo neoliberal, como uma proposta autoritária de capitalismo ainda mais excludente e destruidor em termos ecossociais.
Não fomos capazes de gestar uma cultura democrática capaz de disputar hegemonia, como direção política transformadora, depois que superamos a ditadura militar de 1964-1985. Tivemos, sim, avanços, mas não de todo resilientes. Num certo sentido, o renascimento do fascismo e da adesão que conseguiu na sociedade civil e na disputa eleitoral nos pegou de surpresa. Depois da ditadura militar, de triste memória, achávamos que estávamos imunes, mas não. A anistia feita lá atrás foi conciliatória e a conciliação deixou o mal vivo e atuante, esta é a verdade política que devemos encarar. As Forças Armadas do Brasil – recurso sempre à mão das classes dominantes brasileiras quando se sentem acuadas ou ameaçadas em seus privilégios – são contra o povo brasileiro e se autointitulam como garantidoras da institucionalidade, quando politicamente só e unicamente as cidadanias são institituintes e constituintes.
O grande segredo da onda fascista que se gestou em nosso seio, liderado por um “mito” de origem militar e declaradamente antidemocrático, foi dar atenção a alguns dos problemas cotidianos vividos na massa da população, que afetam particularmente aquela enorme faixa de estratos médios inferiores, especialmente urbanos, contaminados pelos valores do capitalismo de sucesso individual pelo esforço, pelo empreendedorismo, pela competição, cada um fazendo valer seu interesse acima de tudo. A causa dos problemas e frustrações desses extratos médios não foi percebida como sendo causado pelo próprio sistema capitalista neoliberal. Pelo contrário, a causa foi percebida como de ordem política, como resultado do que fizeram ou tentaram fazer os governos de esquerda que tivemos e que deram atenção aos pobres, indígenas e negros, e dos lutadores por direitos de gênero, vistos como fracassados e indesejáveis. Ao mesmo tempo, toda a esquerda foi vista como corrupta e assaltante do poder em seu próprio enriquecimento. Tudo foi associado a uma pauta moral e nacionalista. Os absurdos se legitimaram e contaram com os “mercadores da fé” para conseguir adesão ampla no meio popular. O individualismo foi acentuado e o rearmamento individual virou mote de governo, visto como uma forma de se defender e se proteger dos indesejáveis porque contra certo Deus, a pátria, a família e os “bons costumes”. Aí até milícias foram legitimadas.
Como desconstruir isto? Foi e é algo totalmente novo, em sua intensidade e capacidade destrutiva. Na verdade, vínhamos demandando mais democracia e outro mundo possível como solução macro para o neoliberalismo, com sua globalização e sua destruição em termos ecológicos, sociais e econômicos. As frustrações foram se avolumando com os poucos avanços obtidos para os estratos médios no período 2003-2016 dos governos de esquerda, Lula e Dilma. Na avaliação que faço foi pela pouca ousadia em transformar as relações e lógicas estruturais herdadas do colonialismo e reforçadas pelo capitalismo neoliberal. Isto se expressou na aceitação política dos termos da “conciliação de classes”, embutidos na anistia e na Constituição de 1988. Tivemos conquistas, mas muito faltou ou até deixou de entrar na agenda pública.
Agora não basta reconstruir. Devemos festejar a recriação e até ampliação dos espaços de participação nas políticas governamentais e também no Parlamento. Mas isto não é transformador em si. Transformação se faz a partir da participação política na “rua”, com a radicalidade que a liberdade dá para se sentir cidadão instituinte e constituinte de democracias transformadoras, com direitos iguais para todas e todos. A participação cidadã nos espaços de poder governamental, na implementação de políticas públicas e até na busca de maior eficácia delas, é sempre necessária e bem-vinda em democracia.
A bem da verdade, precisamos reconhecer que há uma tarefa que não podemos esperar do Estado, mesmo com o governo que elegemos. Ela é nossa mesmo, como prioridade de cidadanias ativas. Se não a assumirmos é claro que nada acontecerá. Aqui me refiro à necessidade de criar uma onda na sociedade civil que viralize positivamente com informações de qualidade, concepções, análises, debates e imaginários, com a propagação de princípios, valores e direitos de cidadania radicalmente democráticos e ecossociais transformadores. Além disto, não tenho dúvidas que tal ação política autônoma, na esfera civil, é indispensável para o governo que elegemos agir num quadro complexo de relações de forças que conforma o Estado, tanto no Executivo, como, sobretudo, no Parlamento.
Mas o desafio principal que temos, agora que o mal imediato maior foi apenas adiado, é nos fortalecer a nós mesmos e as nossas narrativas, tanto as de crítica à ordem capitalista vigente, como, imediatamente, do fascismo, com construção de potentes narrativas democráticas ecossociais transformadoras. Só elas nos podem dar base para disputar na sociedade civil a hegemonia democrática com vigor e assim, no imediato, evitar o pior de capitalismo e, num horizonte futuro, a sua superação em nome da sustentabilidade da vida no planeta terra e da humanidade ela mesma.
Para isto também já temos muito acumulado e que precisa se tornar nosso saber democrático potente. Não estamos começando da estaca zero. E temos uma sinalização nova vinda do Governo Lula nesta fase: cuidar de gente, um poderoso mote para o governo. É indispensável acrescentar, por nós, o cuidar da natureza. Ou seja, cuidar da vida, de todas as formas de vida, humana e não humana, assim como cuidar da integridade dos sistemas ecológicos do planeta, nosso bem comum maior. Bem, tal capítulo deixarei para as próximas postagens.
—
Ilustração: Mihai Cauli / Terapia Política